28/08/2012

PARA COMPRAR MEU LIVRO...

A Editora Multifoco me entregou alguns exemplares da antologia de novos escritores da qual faço parte! Meu conto fecha o livro.

Especialmente para quem não é do Rio, caso queiram adquiri-lo (recomendo), mandem um e-mail para dudadalm@gmail.com Custo promocional + envio.



26/08/2012

O que sou é tudo que não está no texto

Tem uma velha que grita. A voz dela invade o caixote de madeira onde estou. O marido dela responde gritando, e a filha fala gritando. É uma família de gritadores. Talvez a velha seja surda, talvez sejam apenas mal educados. A voz da velha é insuportável. É rouca e fina ao mesmo tempo. O timbre é agressivo. Parece que ela precisa contrair todas as entranhas pra soltar uma palavra. Ela tem aquela voz que deixa quem escuta com falta de ar. Logo, ela é insuportável.
Não a conheço, mas a voz dela entra pela minha janela, e a casa está terrivelmente silenciosa. Não há outro som para se sobrepor a voz da velha. Os morros formam um alto-falante de pedra, projetando o discurso da velha. E, pior que tudo isso, não há nada interessante a ser dito. Ela não fala frases interessantes. Não é uma boa porta voz da inteligência ou da diversão. Ela apenas gralha.
Lembro de quando você quis comprar uma arma de chumbinho. Fui contra. Mas agora, bem me serviria dela. E você não estaria aqui para ver. Eu atiraria bem ao lado da velha, para dar um susto, a cada vez que o tom de voz subisse. Como um censor. Não me julgue. Todos somos censores. A diferença é que uns materializam, outros não. E eu definitivamente atiraria se tivesse uma arma.

A velha calou-se.

Me sinto solitária.
Pergunto o que será que ela faz agora, que prende sua atenção.

21/08/2012

A incidência dos pendurados

Jogar tarot é uma verdadeira loucura. Tanto que esse blog ganhará um apêndice, todo dedicado as cartas. Elas estão comunicativas demais para ficarem dentro da minha salinha, divididas entre duas pessoas. Devem ser lidas em voz alta, pois sua lição é para todos.


O Enforcado, ou Pendurado como prefiro falar
Tarot de Marseille, reeditado por Jodorowsky e Camoin -- meu tarot de atendimento

O que me impressiona nos atendimentos é o número de pendurados. O Pendurado - XII. A décima segunda carta, entre A Força e O Arcano Sem Nome, popularmente chamado de Morte, o esqueleto numa jangada.
Desfila por mim uma série de pendurados -- impotentes, pessoas amarradas a suas próprias criações negativas e vícios no modo de ação. Pendurados que protelam, protelam, protelam e esticam o máximo que podem o giro da roda. Ouso dizer que essa é uma tônica da nossa atual condição humana, mas é preciso coragem. Rezo toda vez que encontro um Pendurado pelo meu caminho -- porque também tem essa; os Pendurados nos ancoram, amarram pedras a nossos pés sem percebermos, e de repente estamos há tempo demais na mesma paisagem, enquanto o céu azul distrai. Muito cuidado com os Pendurados.

Acrobacia que reproduz a posição da lâmina, vista de costas. 
O Pendurado está exatamente assim, com as mãos livres, 
porém atrás do corpo, revelando a falta de iniciativa 
de livrar o próprio nó.

Os Pendurados não são necessariamente pessoas, embora esses sentimentos-âncora se reflitam nos indivíduos. O Pendurado é o terror do enfrentamento, que se converte em indolência e preguiça, e causa grande melancolia e vitimização. O Pendurado esquece que pendurou a si próprio e bota a culpa nos outros, embora lá no fundo suspeite. Mas ele acredita. O Pendurado se recosta e espera que alguém o tire daquele lugar, pois ele aparentemente está preso, não tem para onde ir, e oh como a vida é difícil para ele.

Você tem algo para resolver, mas não depende apenas de si próprio. Você precisa falar com aquela pessoa que te enrola, e te estica, e te amassa, e te pede 1, 2, 3, 4 dias. Está ocupada, muito ocupada. É uma pendurada. Não tem tempo. Nunca.

Mas a lição do Pendurado é que apenas os que estão em fuga é que não podem parar para beber água durante a viagem.

Bruno Dewaele reproduzindo a lâmina

E você mesmo, que corre. Corre deitado, mas corre, foge. Não quer de jeito nenhum, não quer fazer. Não se sente capaz. Empurra, estica. Se dá um, dois, três prazos. E acha que algo vai cair do céu, e as vezes até cai; Aquilo que tinha de fazer alguém acabou fazendo, ou desmarcando, ou correndo também. Sinto, mas tu é um Pendurado. O que passou foram os teus cavalos, que escolheram o destino da tua carroça por você. A diferença é que o Pendurado não tem cavalos; estes já fugiram. Tampouco carroça, que a terra já comeu. As moedas caíram dos bolsos, a mulher casou com outro, a casa foi invadida, a plantação apodreceu. E ele vendo tudo, de cabeça pra baixo.

A escultura cômica de David Cerny, que representa o bom rei Wenceslas 
num cavalo morto e pendurado em Praga. Uma outra forma interessante 
do Pendurado, pois este é a representação do Imperador-IV do tarot 
de cabeça para baixo. Apoiar-se num animal morto é pendurar-se; 
depositar num ser externo o rumo do próprio caminho é pendurar-se.

De cabeça pra baixo, todos somos iguais. Impotentes. Pendurados.

Mas só se pendura com permissão. É preciso mais do que estar com o pé dentro da corda. O Pendurado nos lembra que todos nós temos esse potencial. Todos somos passíveis de ser pendurados. Todos trazemos a corda enforcando o tornozelo, ondulando no chão da nossa jornada como uma cobra de boca aberta, pronta pro bote. 
Mas permitir-se ficar de cabeça pra baixo, ah. Para isto é preciso indolência.

E há um espaço especial para os indolentes no Inferno de Dante.

16/08/2012

THE BLASFÊMEAS -- Pussy Riot, Pussy Putin

Rótulos vêm tarde -- se você tiver sorte.
Somos uma coisa a vida inteira até a hora que existe uma palavra pra isso, que não necessariamente se integra com o que você sente, dentro. Fui uma criança quieta, uma adolescente quieta, uma adulta quieta. Uma criança bélica, uma adolescente bélica, uma adulta bélica. Não gostava muito de me comunicar com pessoas que não iam entender, e não queria me fazer entendida por todos. Os outros que se fodam, era o que eu pensava, pensei, penso. Não preciso de pessoas, nem da autoridade de pessoas. Não quero parecer bem aos olhos dos outros; quero parecer algo totalmente diferente deles e só isso. Então fiz 14, tive coragem de assumir o universo punk hardcore que já fazia parte dos meus discos e atividades, descobri um monte de bandas com garotas de voz fina berrando e mudei todas as alcunhas virtuais para riot grrrrrl e variações. Ás vezes era grrl, num dia calmo, ou grrrrl num dia muito agitado, ou ainda GRRRL! quando o sangue esquentava. O que importa é que me vocalizar fêmea era sempre um rosnado, um grunhido, uma imposição. Sou mulher, mesmo que as roupas sejam masculinas, sou mulher e quero usar preto, sou mulher e não quero fofocar a vida dos outros nem ficar pensando em meninos e homens. Quero tocar bateria, ler JD Salinger e viajar. Era tudo que eu queria aos 14 anos -- e uma boa razão pra brigar com o mundo, o que nunca foi difícil de encontrar.

A nostalgia riot retorna a mim, com rótulo e tudo, através da prisão do Pussy Riot, coletivo russo de mulheres. Os rosnados continuaram aqui dentro, sem dúvida. Energia disforme pré-título, nasceu comigo, since 1988. Essa jamais irá embora, jamais me abandonará. Era, fui e sou. Santíssima trindade. Fugir dela é ser como um macaco em roupas de bebê.
Para entender o Pussy Riot, é preciso ir um pouco mais além. É preciso saber sobre a Rússia, sobre Putin, sobre a questão religiosa. Fácil, só dar um google. O Pussy Riot fez um protesto contra Putin, três de suas integrantes foram presas e correm o risco de ficar 7 anos em regime fechado por blasfêmia.
Quando se mora no Brasil, é louco pensar nisso. Protesto político aliado a condição sexual. Aqui a revolução não é nem silenciosa.

Eu vivo no Rio de Janeiro.

O Rio é uma cidade sem política e uma cidade de macho. Uma cidade onde ser mulher implica biotipo e livre direito de admoestação masculina -- é o que eles pensam. Ser mulher no Rio é viver sob a pressão do corpo. É ouvir frases indesejáveis de homens indesejáveis na rua, ser incomodada por carros em movimento que impedem a sua passagem para falar idiotices. Ser mulher no Rio de Janeiro é ser desrespeitada todos os dias. Mesmo caminhando para a globalização da cidade, recebendo estrangeiros que buscam aqui lar e trabalho, a Europa quebrada e Estados Unidos idem. E dentro dessa configuração, a mulher continua a ser tratada dessa forma no convívio básico. Inaceitável. Mas eles não farão nada por nós. Cabe a nós, fêmeas, que façam.

Quando um homem de uniforme diz obscenidades pra você na rua, ele não só está desrespeitando você como o próprio trabalho. Cuspa de volta.
Quando um senhor de idade diz obscenidades pra você na rua, ele não só está desrespeitando você como a própria condição e aceitação da idade madura, da idade sábia, que é tão desvalorizada nessas terras. Cuspa de volta.
Quando um homem qualquer sente-se no direito de abordar uma mulher da forma que lhe aprouver, rosne como um cachorro, como um gato, como um tigre, como uma leoa.

Não se engane, AINDA SOMOS O RETRATO DO SUBDESENVOLVIMENTO.
Não se iluda pela cortina de ópio dos números crescentes da nossa economia. NÃO HÁ DIVISÃO JUSTA.
Tudo que podemos exigir é respeito. Respeito enquanto nação, e enquanto mulheres.

CUSPA DE VOLTA.


Pussy Riot protest (Russia)

10/08/2012

Jantar com o prefeito

Originalmente publicado aqui.



Alguns convites são a porta de entrada de uma complexa construção de questionamentos. Por isso, quando fui convidada para jantar com o prefeito no clube de cavalos da cidade, entendi que era momento de reavaliar os rumos que a vida tomou.
No táxi, com minha grande amiga heroína de Dante, compartilhamos a saudade, elogiamos a roupa uma da outra e nos contemplamos num silêncio eremita. Depois, explodimos em histeria. Rimos do deslocamento, do quanto éramos politicamente dicotômicas, da fome que apresentava seus primeiros sinais. Aí começamos a desconfiar da situação. Sou escritora. Ela é produtora. Temos 24 anos e sapatos exóticos. Não temos nada a ver com o prefeito. Sequer votamos nele. O nervosismo ria de nós. E se ficarmos perto demais? O que vou dizer? Sou um touro numa loja de porcelana. Beatriceé pior, tem um senso de justiça apuradíssimo e compra brigas napoleônicas por causa disso. Eu a admiro.
Duas mocinhas sendo acometidas por um surto de sinceridade esquizofrênica. O taxista nos observa pelo espelho. Me dou conta de que há um terceiro corpo naquele espaço. Expusemos demais. Resolvo puxar conversa. Toura. Moço, desculpe, não perguntei seu nome. “Rodolfo”, ou “Tô louco pra essas duas imbecis saírem daqui, essas apoiadoras do prefeito, essas mamadoras de teta”. Luta de classes dentro do táxi. Talvez eu devesse fazer um comentário positivo sobre Marx. Ou sobre o Flamengo. “E o Flamengo, hein?”. Ele solta um resmungo. Talvez seja Fluminense. Beatrice desceu do céu e agora me acompanhava no purgatório.
Estávamos numa cilada. O arrependimento amarga. Pagamos o taximarxista e caminhamos sob o holofote da lua cheia com nossos saltinhos enfiados na areiado hipódromo vazio. A fila de carros descarregava pessoas de pescoço duro enroladas em panos caros que eram abordadas por um segurança monotemático que pergunta “Jantar do senhor prefeito?” e dá um sorriso em forma de seta à esquerda. Subimos a escada de madeira com vista para um aquário de senhorinhas da quarta idade que faziam abdominais com as frontes suadas. Um sorriso de tailleur preto pergunta nossos nomes. Nossos nomes? Bem, meu nome pode ser vários. Pode estar como Duda, como Maria Eduarda, só como Eduarda ou só como Maria, não sei, Beatrice, você sabe como está meu nome? O dela é só Beatrice. Beatrice o que? Ah podem ser vários, eu tenho três sobrenomes, pode ser Jordão, pode ser… OK, tudo bem, sejam bem-vindas. Não havia tempo para surtos de sinceridade aqui.
O jantar não era pequeno, e ao mesmo tempo havia gente demais. Parecia… um casamento. Garçons, música, iluminação, flores brancas, grandes mesas redondascongregatórias com uma profusão de talheres e guardanapos de pano. Todos tilintavam esperando o prefeito chegar. Eu e Beatrice girávamos sobre o próprio eixo procurando nós mesmas dentro daquele lugar. Então, fomos recepcionadas pelo cara que nos convidou – o cara mais simpático do mundo. A pedra fundamental do fim de nossas dúvidas e inseguranças. Ele nos acomodou junto de sua mãe, uma das senhoras mais bonitas que já vi. Não era de aparência solar; tinha uma beleza infernal, cabelos e sobrancelhas negríssimas, olhar distante e ombros eretos. Ela nos cumprimentou como só uma mulher madura e deslumbrante pode fazê-lo. Nos agarramos às nossas bolsinhas e sentamos a uma cadeira de distância dela, para evitar o tête-à-tête.
Engolia uns rolinhos de cordeiro quando o cara mais simpático me trouxe uma taça de vinho branco e senti aquela quentura do cavalheirismo de um homem. Beatrice percebe. Beatrice ri. Beatrice diz que falta apenas 1 mês para ela poder voltar a beber. Ela fez uma promessa, e falta pouco. Meu deus, Beatrice, e se esse povo descobrir que somos duas macumbeiras?
Meu status é meio bêbada quando o prefeito aterrisa sob aplausos. O casamento acabou. Estou num evento político. Ele cumprimenta um a um. O que eu vou falar? O que você vai falar? Primeiro, largue a taça. Levanto e quase derrubo a mesa, a bolsa, a Beatrice. Cumprimento-o com dois beijinhos e um aperto de mão. A pele é boa. O cabelo está bem arrumado. Ele está em alfa. Presente, mas ausente. Seguro. Curtindo. Poder é um troço doido.
Começa o discurso. Amigos dão depoimentos sobre o prefeito homem e o prefeito prefeito, mas não consegui ver ninguém pois havia muita gente na minha frente e o vinho amoleceu as pernas. Só escuto vozes. Começo a olhar a cara e a bunda das pessoas. Cara-bunda, cara-bunda, cara-bunda. O homem da frente tem um defeito bem na bunda do terno. Uma mulher usava um vestido preto vulgar, sem sutiã, salto altíssimo e conjunto da obra que deixa a bunda proeminente. Futura musa do mensalão. Aquele cara do Afroreggae não parecia muito feliz. Não vejo artistas aqui, ao menos não conhecidos. Encontro o ex marido de uma conhecida que já ostenta nova mulher altíssima. Ela ri das piadas do prefeito. Ele gosta que ela ria. O cara mais simpático abraça a mãe beleza infernal. Ele parece um pouco o prefeito. Na verdade, acho que ele quer ser prefeito. Se a eleição fosse ali, naquele momento, votaria nele. Fico pensando em quem sonha ser político. É um pouco como quem sonha ser cantor, ou ator. Tem que gostar de público, tem que gostar de si mesmo na frente do público. Se eu fosse político, só falaria via rádio. Odeio aparecer. Mas gosto de me vestir. Isso não é necessariamente a mesma coisa.
Beatrice mexe no seu celular multifunções. Me sirvo da massa de abóbora com molho branco e queijo parmesão. Acabo de sair de uma intoxicação alimentar horrorosa. Na verdade, acho que evacuei a mim própria e iniciei uma nova existência. Ainda estou me acostumando. Beatrice serviu-se de bife e batatas redondas. A comida estava bonita.
Após o jantar, cara mais simpático faz a pergunta derradeira. “E aí, vão votar nele?”. Digo que as batatas estão boas. Ele começa a falar. Falar de índices, números. Respeitosamente escuto. Gosto do cara. Dá até vontade de votar  no prefeito dele, tão nobre e bonito. Esse é o meu problema. Me apaixono por histórias e relatos. Pra mim, todo mundo é personagem. O prefeito vem se despedir. Agradeço o jantar. Lembro que o prefeito é de verdade. Que o jantar é por causa do prefeito de verdade. Que a eleição é de verdade, que a cidade que vivo é de verdade. Na verdade, cara, acho que você pode ficar confiante, porque seu prefeito provavelmente será eleito. Ele é a única alternativa concreta no momento. Entende? Mas obrigada pelo convite, mesmo. Foi ótimo.
Aperto sua mão com um sorriso mecânico, e ele me responde com outro sorriso mecânico e um brilho de desapontamento nos olhos.

Esse é o nosso problema, cara. Surtos de sinceridade. Eu te perdôo e você me perdoa. Nós não conseguimos esconder o brilho de desapontamento dos nossos olhos.

03/08/2012

Atendimento com tarot

Chegou a hora...

Abri os atendimentos com tarot!


Para marcar um horário, mesmo sendo de fora do RJ, mande um e-mail para tarotdesal@gmail.com que a gente conversa.



02/08/2012

DALÍ/DANTE

Maravilhosas gravuras de Salvador Dalí ilustrando A Divina Comédia, de Dante. Em exposição na Caixa Cultural, centro do Rio de Janeiro, ao lado da estação da carioca, até 2 de setembro.

Vá. Simplesmente vá.



31/07/2012

Sobre On The Road - o filme.

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE AQUI.




SOBRE A ROTA
Estava com uma intoxicação alimentar que me deixou de cama por quatro longos dias em que cinco pílulas de cores diferentes desciam pela garganta e um lutador de sumô dançava em cima da barriga. Perdi um trabalho, perdi o aniversário do meu pai, perdi a cabeça e fiquei louca, demente e febril. E a ânsia de assistir “Na Estrada” me consumia há duas semanas. Quando os pôsteres começaram a subir em Paris, vi o manuscrito original do livro exposto no Museu de Letras. Um imenso rolo de telex, amarelo como os dentes de um lobo velho, ocupando toda uma sala. Eu estava em brasas.
Talvez eu esteja indo rápido demais.
Há um livro. O livro. O grande livro para muitos. Chama-se simplesmente “On The Road”, como uma revista de turismo barata ou uma música ruim. A pedra fundamental do movimento beat, que nada mais era do que um grupo de jovens amigos gênios e vagabundos que se expressaram em boa literatura – um relato cru, ritmado e sem censura dos Estados Unidos pós-guerra. Era 1950, eles tinham vinte anos, rejeitavam o materialismo, flertavam com religiões orientais e todo tipo de experimentação que os levasse ao limite. Os primeiros punks, mas com ternos amassados e uma poesia maravilhosa e delirante. Praticamente todos tiveram reconhecimento literário – merecido. Dividiam a mesma fonte, a mesma matriz, e falavam das mesmas pessoas, cada um com sua visão. Um quebra-cabeça de letras retalhadas e viradas do avesso. Havia o judeuzinho de óculos e sexualidade confusa, hoje reconhecido mundialmente como o grande poeta Allen Ginsberg. Havia o velho búfalo William S. Burroughs, ídolo de Kurt Cobain, Frank Zappa ePatti Smith – chegando a conviver intensamente com estes, pois faleceu no final dos anos 90. E Jack Kerouac, o grande. O big bang. O autor da maravilhosa semente, transformada corajosamente em filme por Walter Salles.
Uma coisa importante: nenhum fã do livro ousaria, a princípio, transformá-lo em filme. A narrativa errática e poética é tão delicada que se puxarmos, ela quebra. Mas Kerouac, o próprio, tinha interesse em fazê-lo – e pediu a Marlon Brando. Ele interpretaria o personagem-bomba Dean Moriarty e Kerouac tomaria parte de seu alter-ego, Sal Paradise. Brando não se animou muito, Coppola comprou os direitos da obra e a trancou num cofre dourado (é como gosto de imaginar a coisa). E alguns anos atrás, o diretor brasileiro – também um amante da estrada, coisa que deixa muito claro em praticamente todos os seus filmes, anuncia em voz serena que está colhendo material para sua próxima filmagem, justamente o clássico. Desde então, foram dois longos anos aguardando a estréia.
A doença se abateu sobre mim, mas devo prosperar, disse para o meu corpo.  Domingo, dia oficial da família, levantei-me e fui ao cinema. Peguei um táxi vagaroso e vi os minutos escorrendo do painel do carro enquanto o lutador de sumô sapateava na minha barriga. Cheguei com dois minutos de atraso e comprei a última entrada. A última. Poltrona número 1, de fuça pra tela. A porta estava aberta, me esperando, e um trailer com Jennifer Lopez e Rodrigo Santoro tagarelava animadamente. Comecei a entrar em trabalho de parto. Então, soaram os primeiros acordes de uma musica melancólica e infantil, as luzes se apagaram e calças e sapatos antigos caminhavam por uma longa estrada pavimentada. O filme começou.
AGORA HÁ UM GRANDE NÓ NA MINHA GARGANTA.
O que vejo, nas próximas duas horas e vinte minutos – que passam agradavelmente, é um cinema lotado de seres vivos entrando em contato com o que mudou a minha vida. E eu na primeira cadeira. Parecia que o filme era meu. Toda vez que riem com as crises existenciais de Carlo Marx, ou com a virilidade de Dean, sinto um aconchegante abraço. Não havia melhor lugar do que aquela primeira cadeira, com ninguém na minha frente e uma imensa tela que nem cabia nos meus olhos. Pude ver os poros dos personagens reais que tanto amo, pude vê-los em movimento e em cores, e dividi-los com quem nunca os sonhou antes. Já fiz isso muitas vezes, e tenho certeza que Walter também – não houvesse de sonhá-los, não faria o filme que fez. Uma verdadeira ode a Kerouac e seus amigos, aos meus heróis. Um filme que comunica, que não é hermético. Um filme aberto como a própria estrada.
A única forma de transpor On The Road pra tela é desprezar a costura de retalhos literária de Kerouac, absorver os sentimentos e emoções que essa leitura desperta e provocá-los novamente através de imagens. Desprezar a geografia da viagem de Dean e Sal, desprezar personagens e acontecimentos. O livro trata de sensação. Garotos deslocando-se pela sensação e apenas isto. Não há clímax, pois não há fim, não há objetivo, apenas a estrada e o que acontece nela. Para Kerouac havia um livro, para Ginsberg o grande poema, mas para Dean Moriarty havia apenas a longa e dura estrada. Dean, na verdade Neal Cassady, inclusive morreu nela, ao lado de uma linha de trem no México.
O que senti vendo o filme é o que senti lendo o livro. Um vazio, às vezes uma exaustão, uma vontade de gritar, um choro que vem sendo trazido lentamente para explodir no final, como fogos de artifício.
Penso em Allen Ginsberg. Penso em Jack Kerouac. Penso em William Burroughs. Penso em Neal Cassady. Penso em Carolyn Cassady. Penso em LuAnn, penso em David Kammerer, penso em Gregory Corso, penso em Lucien Carr. Penso em Walter Salles. Rezo por todos. Amém.

28/07/2012

O que sobra pras mulheres que não vivem só de amor?




Você não deveria pintar suas unhas do pé de esmalte escuro. Faz parecerem sujos.
Estou sempre com os pés meio sujos. Quando escorrego pelo sofá, noto a pretidão daquelas solas meio grossas meio finas. Bastam alguns passos para enegrecerem. Os pés dele estão sempre limpos, ainda que exalem cheiro de suor ocasionalmente. Os meus não. Nunca suam. São frios como mármore. Essa é basicamente a diferença entre nós, se eu precisasse espremê-la em uma hora de sessão de análise. Chama-se associação livre, eu diria isso e o analista entenderia tudo, traçaria um mapa de infância, de como meu pai me tratou e a mãe dele o tratou, com quantos anos iniciamos nossas vidas sexuais, se eu já tive um orgasmo ou não. Você não fica muito tempo falando de relacionamentos, disse o analista. Isso é incomum. A maioria das mulheres vem aqui e falam de seus casos, namorados, maridos, ex maridos. Sobre o que devem pensar e o que fazem quando não estão com elas, e de como não as olham mais. Ninguém faz análise quando está apaixonado, concluo dentro do cérebro, enquanto ele continua em círculos. Você não fala do seu relacionamento amoroso, isso é curioso. Você não odeia os homens. A maioria das mulheres, ainda mais com a sua história de vida, odiaria os homens, culpá-los-ia. -- Penso em algo pra dizer. Ainda faltam uns vinte minutos. Parto pra outra livre associação. Conheço bem o jogo da análise. São dez anos. Quando não sei o que dizer, enfio uma livre associação, e sempre dá em algum lugar. Odeio pés, digo. Não suporto olhar os pés dos outros. Alguns pés me repugnam profundamente. Já namorei homens cujos pés não conseguia olhar, e quando queria odiá-los, quando estava chateada ou já não os amava mais, espiava seus pés só para sentir nojo. O que isso diz sobre mim? Nem tudo que a gente faz quer dizer alguma coisa, ele responde. Mas porque você, novamente, está usando os pés para introduzir uma questão sobre os seus relacionamentos? Você tem dificuldade de falar sobre isso? Porra, Marcos – eu chamo o analista pelo nome próprio. Preciso ser tão clara? Eu odeio falar sobre relacionamentos. Na verdade odeio pensar em outras pessoas que não eu, porque eu odeio conjeturar o que o outro está pensando, e assim num eterno xadrez. Odeio ficar no sofá pensando por onde anda fulano, o homem que eu amo, e odeio mais ainda ter que ligar para perguntar onde ele está, coisas assim que as pessoas fazem. Eu até faria, se achasse que isso é bom. Pra mim não significa nada, mas se pusesse um sorriso nos lábios de alguém, eu o faria. Mas tenho o feeling de que eles odeiam isso tanto quanto eu. Esse tipo de informação simplesmente não agrega absolutamente nada. E tenho pavor dele não querer me atender, não querer saber de mim. Suponho que quando não está comigo é porque não quer saber que existo. E tudo bem. Odeio dizer onde estou. Parece idiota. "Estou na farmácia, comprando remédio para harmonizar a flora intestinal". Ninguém diz isso. Então mente. "Estou na rua". Por isso que a idéia de casar é tão insuportável, porque isso pressupõe que devo estar o tempo inteiro com ele -- no dedo, no sobrenome, na chave de casa, sei lá, a porra toda, Marcos. Nenhum homem suporta isso. O amor não existe num território assim. E eu não suporto todas essas mulheres que ficam escrevendo sobre amor e paixão nessas revistas e blogs, são todas umas fodidas. Ninguém que está vivendo feliz a sua vida vai ficar escrevendo esses dramalhões. Eu sou uma escritora, Marcos, e sou mulher. Não posso me submeter a essa literatura de merda. Prefiro escrever sobre pés. Ou sobre dentes, ele responde. O que? Sobre dentes? -- Sim, seu próximo livro não é sobre dentes? É, é sim. Sobre dentes. Mas não tem nada a ver com amor. Tem a ver com animais, e com homens cruéis, e esse tipo de coisa. Não tem nada a ver com homens e mulheres, amorosamente falando. Então agora ele solta aquele pigarro-de-fim-de-sessão, o pigarro que ele solta pra preencher um silêncio provocado por ele próprio, seguido de um sorriso finalizador, o aperto de mão e o giro da maçaneta. 

24/07/2012

"Mashup do Exílio", publicado no último domingo no RioEtc.



Um mashup de poesias e línguas é o mais perto de como minha cabeça está nesse momento.
Mashup do Exílio (“Canção do Exílio”, Gonçalves Dias + “Nostalgia”, Caetano Veloso + “Walking Around”, Pablo Neruda + “Anthem”, Leonard Cohen” + “Onde Eu Nasci Passa Um Rio”, Caetano Veloso + “Je t’aime, Moi non plus”, Serge Gainsbourg)
Minha terra tem palmeiras, 
onde canta o sabiá;
Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
Abatido, impenetrável, como um cisne de feltro.
Je vais, je vais et je viens
Entre tes reins
Je vais et je viens
Entre tes reins
Et je me retiens
Je t’aime moi non plus.
As aves, que aqui gorjeiam, 
não gorjeiam como lá.
Há pássaros de enxofre com horríveis intestinos.
Eu só quero um descanso de pedras ou de lã;
Acontece que me canso de ser homem.
Onde nasci, passa um rio
Oh mon amour
Comme la vague irresolute.
Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar.
We asked for signs
the signs were sent;
You just feel faintly proud when you hear they shout
“you’re not allowed in here, get out”
That’s what rock’n'roll is all about
Hoje eu sei que o mundo é grande,
e o rio deságua no mar
Tu es la vague, moi l’île nue
Tu vas, tu vas et tu viens
Oh, je t’aime.
Não permita Deus que eu morra, 
sem que eu volte para lá
O rio só chega no mar ,
Depois de andar pelo chão.

22/07/2012

CRU

Já em terras brasileiras, mas com turbulência no coração.
Preciso de uns dias pra me recompor. Comunicação agora só em código morse.

Voltar à pátria pode ser cruel.


11/07/2012

Carência em Paris

Ficar carente é foda. Em Paris então. Mas faltam apenas 10h. 10h pra trepar muito e sentir a quintessência.

Enquanto isso, meus filmes pornôs.


>>DRIVE



>>MICHAEL FASSBENDER



>>FASSBENDER DE JUNG, ME ESPANCA!


MY FUCKING CROOKED TEETH.


















Uma espécie de troféu.

Vou tirar um a um e fazer um colar;
Terço fossilizado
O Egito e a Virgem
num só pescoço.

10/07/2012

04.Paris____________________________UN CHIEN ANDALOU

Há uma ótica aqui ao lado com cheiro de velharia, onde um simpático senhor gorducho clone do Jô Soares e seu animado cachorrinho preto me cumprimentam quando passo.
E quando a saudade dos meus filhos peludos sufoca e paralisa, vou lá dar um amasso no pequeno de olhos afetuosos.







09/07/2012

03.Paris______________________HÔTEL LUTETIA

Hôtel Lutetia
45 Boulevard Raspail, St Germain des Prés (6éme)

Paris chamava-se Lutetia Parisorum, nome dado pelos romanos. A pequena Lutetia era uma vila de pescadores que viviam do rio Sena. Em latim, significa "lama" -- por causa da cheia do rio. 
O Hôtel Lutetia  tem papel histórico na ocupação dos alemães da segunda guerra. Quando a guerra começou, em 39, o hotel virou refúgio de fugitivos e artistas. Mas, quando o governo francês evacuou Paris em 1940, o Lutetia foi ocupado pelos próprios alemães nazistas, como moradia e "centro de entretenimento". Já em 44, no fim da guerra, Paris foi desocupada e o hotel se tornou um centro de repatriação de prisioneiros, perdidos de guerra e saídos dos campos de concentração nazistas.

Eu fui lá só pra comer um saumon de fumée e tomar um cafézinho.