26/08/2012

O que sou é tudo que não está no texto

Tem uma velha que grita. A voz dela invade o caixote de madeira onde estou. O marido dela responde gritando, e a filha fala gritando. É uma família de gritadores. Talvez a velha seja surda, talvez sejam apenas mal educados. A voz da velha é insuportável. É rouca e fina ao mesmo tempo. O timbre é agressivo. Parece que ela precisa contrair todas as entranhas pra soltar uma palavra. Ela tem aquela voz que deixa quem escuta com falta de ar. Logo, ela é insuportável.
Não a conheço, mas a voz dela entra pela minha janela, e a casa está terrivelmente silenciosa. Não há outro som para se sobrepor a voz da velha. Os morros formam um alto-falante de pedra, projetando o discurso da velha. E, pior que tudo isso, não há nada interessante a ser dito. Ela não fala frases interessantes. Não é uma boa porta voz da inteligência ou da diversão. Ela apenas gralha.
Lembro de quando você quis comprar uma arma de chumbinho. Fui contra. Mas agora, bem me serviria dela. E você não estaria aqui para ver. Eu atiraria bem ao lado da velha, para dar um susto, a cada vez que o tom de voz subisse. Como um censor. Não me julgue. Todos somos censores. A diferença é que uns materializam, outros não. E eu definitivamente atiraria se tivesse uma arma.

A velha calou-se.

Me sinto solitária.
Pergunto o que será que ela faz agora, que prende sua atenção.

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